Raízes
De vez em quando, surge uma inquietação a respeito das coisas do passado, dos antepassados, das memórias familiares que parecem perdidas na mente. São saberes de ancestralidade que não conhecemos, mas que, de alguma forma, vivem em nosso sangue, em nossas feições, em quem somos sem saber. E então me pergunto: por que isso importa tanto? Por que isso grita dentro da gente, incomoda, como um barulho constante na mente que nos move a procurar algo?
Procurar informações. Procurar sentidos. Procurar...
Às vezes, é muito incômodo procurar, principalmente quando a gente nem sabe exatamente o que está buscando. E então surge a dúvida: para que saber disso é importante? Que diferença isso vai fazer na prática?
No meu caso, falo da cultura indígena. Mas sei que essa inquietação grita dentro de muitas outras pessoas.
Será que pessoas de outros países e etnias também têm essas questões, dúvidas e incômodos? Ou será que isso é mais forte em povos como o brasileiro, o africano, o indígena — que tiveram suas raízes arrancadas, replantadas e misturadas de um modo tão violento que, muitas vezes, perdemos a referência do que somos?
Esses dias, precisei consertar o carro, e o mecânico alertou que a tampa de um dos tanques era paralela. Disse que seria melhor trocá-la por uma peça original, para evitar problemas no funcionamento do motor. E fiquei pensando: será que com a gente é parecido? Fomos formados por tantas misturas, por tantas histórias desencontradas, que às vezes parece que isso interfere no nosso próprio funcionamento interior.
Temo esse pensamento. Ele me soa perigoso, quase miscigenista, e sei que é preciso cuidado para não romantizar a “pureza original” como se a mistura fosse um erro. Mas o que me incomoda não é a mistura em si — é o apagamento. A perda de consciência sobre quem somos, sobre as culturas que nos formaram.
A miscigenação não é o problema. O problema é não saber de onde vieram nossas peças. É não conhecer a história das nossas mães, avós, dos nossos povos. É viver com lacunas que deixam o motor da alma engasgar.
E aí me pergunto: será que conhecer essas culturas que nos formam é importante? Será que resgatar esses conhecimentos antigos, saber nossas origens, faz mesmo alguma diferença?
Sim. Faz toda a diferença.
Conhecer nossas raízes não significa rejeitar o que somos hoje, mas reconhecer cada camada que nos constitui. Isso fortalece a autoestima, cria senso de pertencimento, amplia nossa escuta e nosso olhar para o mundo. E mais: pode curar dores silenciosas, como o sentimento de inadequação ou a sensação de não ter um lugar onde se encaixar.
Outros povos também vivem esse chamado. Afro-americanos nos Estados Unidos buscam na África o que lhes foi arrancado. Filhos de refugiados do Oriente Médio tentam manter suas tradições em terras europeias. Judeus espalhados pelo mundo reconstroem sua história geração após geração. Há um movimento global de pessoas tentando resgatar a si mesmas.
Talvez estejamos todos, no fundo, tentando trocar aquela tampa paralela por algo que nos faça funcionar melhor.
Não para sermos “originais”, mas para sermos inteiros.
E isso não se faz com genealogia fria, nem com purismos ilusórios. Faz-se com escuta, com leitura, com presença.
Faz-se indo a campo, conversando com os mais velhos, aprendendo a língua ancestral, conhecendo a medicina da terra, dançando os cantos antigos, reaprendendo a olhar para o mundo com os olhos de quem veio antes de nós.
Essa inquietação que bate dentro da gente pode ser o chamado para uma reconexão.
Não com um passado idealizado, mas com uma verdade esquecida.
E se ela incomoda tanto, talvez seja porque é mais urgente do que imaginamos.
✨ Identidade em Cristo
Como cristã, carrego a certeza de que Deus nos criou a partir de Sua essência, e que somos plenamente conhecidos e amados por Ele — independentemente da região onde nascemos, da época em que vivemos ou das marcas que carregamos.
Em Cristo, somos completos. A nossa identidade mais profunda está Nele.
E essa é a maior resposta à angústia de não saber quem somos: somos filhos e filhas do Criador, formados por Suas mãos, vistos com amor eterno.
Mas isso não anula o valor de conhecer nossas origens mais próximas. Pelo contrário. Ao olhar para a nossa ancestralidade com responsabilidade e sensibilidade, também vemos os caminhos por onde Deus nos trouxe até aqui. Conhecer a história dos nossos antepassados é reconhecer a forma como o Senhor, mesmo em meio à injustiça humana, preservou vidas, culturas, saberes e resistências.
⚖️ E quanto às injustiças da história?
E então vem a pergunta inevitável:
Como Deus lidará com a injustiça cometida ao longo da história humana por causa das diferenças que nós mesmos impusemos uns aos outros?
A resposta, embora profunda, é clara na fé cristã:
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Deus vê. Nenhuma lágrima se perdeu, nenhum sofrimento passou despercebido. Ele é o Deus que ouve o clamor dos que foram oprimidos (Êxodo 3:7).
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Deus é justo. A Bíblia promete que haverá um tempo de juízo, em que todas as obras serão reveladas (Eclesiastes 12:14). Nenhuma injustiça será ignorada. O racismo, o apagamento cultural, a escravidão, o preconceito — tudo será pesado com justiça divina.
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Deus é reconciliação. Em Cristo, os muros de separação foram destruídos (Efésios 2:14), e o convite é para que vivamos, já agora, uma restauração que começa pela verdade, pelo arrependimento e pela prática do amor.
Portanto, a justiça de Deus não é apenas um acerto de contas no fim dos tempos — ela também é um chamado para que hoje sejamos construtores de pontes, curadores de feridas, reparadores de brechas.
🌱 Conclusão
Saber quem somos em Deus nos dá firmeza.
Mas saber por onde nossos pés caminharam até aqui nos dá raízes.
E quando essas duas dimensões se encontram — fé e memória, espiritualidade e história — podemos nos tornar inteiros. E mais do que isso: podemos nos tornar instrumento de cura para outros.
Que essa inquietação não se cale.
Que ela nos mova a buscar. A aprender. A restaurar.
E a sermos resposta — em Cristo — às dores que o mundo ainda carrega.
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